Considerações inoportunas e politicamente
incorrectas acerca de uma questão dos nossos dias
por João Bernardo
Há
poucos anos atrás, quando preparava um livro sobre o fascismo que entretanto já
foi publicado,
apercebi-me de uma convergência de pontos de vista entre certo tipo de
feminismo hoje em voga e a modalidade racista do fascismo, o
nacional-socialismo hitleriano. Esta descoberta, devo confessá-lo, deixou-me
perplexo.
À
primeira vista, esperar-se-ia uma oposição completa entre o fascismo e o
feminismo, já que todos os tipos de fascismo, embora atribuíssem à mulher um
papel importante na inculcação dos princípios de ordem ou na preservação da
raça, a relegaram para um lugar socialmente secundário. A mulher-mãe era a
mulher doméstica, e a casa, sob a autoridade do marido, era o lugar da função
procriadora. No entanto, num dos seus traços decisivos - a atribuição de uma raiz biológica às manifestações culturais e a
noção de que dadas manifestações culturais indicam uma dada condição biológica - o feminismo que hoje domina os meios académicos e prevalece nos órgãos
de informação, propenso às abordagens «de género», para empregar a terminologia
corrente, actualizou um modelo de pensamento que caracterizara o racismo
germânico, nomeadamente na versão hitleriana.
As
perspectivas «de género» esforçam-se por acentuar a divisão entre a esfera
masculina e a feminina, e assim colocam-se no extremo oposto ao do velho
feminismo, que procurara emancipar as mulheres anulando as diferenças de
comportamento entre os sexos. Ainda não há muito tempo a generalidade do
feminismo possuía um cariz progressivo e ocasionalmente revolucionário, na
medida em que reivindicava o pleno acesso das mulheres aos espaços económicos e
sociais onde predominavam os homens, ou de que eles tinham até o exclusivo. Foi
na Alemanha, durante o período chamado da República de Weimar, entre o final da
primeira guerra mundial e a nomeação de Hitler para a chancelaria, que a
emancipação feminina atingiu uma das suas expressões mais desenvolvidas. A
revolução alemã de 1918 tentara derrubar o capitalismo e remodelar a vida
social sobre a base dos conselhos de operários e de soldados, e embora tivesse
sido derrotada nas suas aspirações económicas não fora vencida completamente e
concentrara-se no plano da sociedade, da cultura e dos costumes, dando origem
não só a uma notável vanguarda artística mas ainda a uma libertação de
preconceitos culturais e sexuais sem antecedentes. Foi necessária a chegada dos
nacionais-socialistas ao poder em Janeiro de 1933 para liquidar este movimento.
O período da República de Weimar, que deu oportunidade a uma das experiências
mais avançadas de feminismo, deve ser tomado como termo de comparação para
avaliar as implicações do actual feminismo académico.
O
arquitecto comunista Hannes Meyer, director da Bauhaus desde 1928 até 1930,
resumiu em meia dúzia de palavras o feminismo emancipador ao escrever que «a
masculinização exterior da mulher manifesta a igualdade interna dos sexos». O que singularizou aquele
tipo de feminismo foi o desejo de superar as diferenças convencionais entre os
sexos e de fundi-los ambos na formação de um género verdadeiramente humano.
Acerca deste feminismo podia dizer-se, como fez um personagem criado por um
crítico alemão, também durante a República de Weimar, que «o sexo [...] passou
a ser uma característica humana secundária». Ainda na Alemanha de
Weimar, Gina Kaus, literata de origem austríaca e feminista reputada, decidiu
averiguar, sem jamais se desfazer do tom irónico, em que medida a linha de
demarcação entre os sexos se fazia sentir nos romances. Se se atribuísse às
mulheres, como era - e continua a ser - comum, «a subjectividade, a sensibilidade e a primazia da emoção sobre
o raciocínio», e aos homens «a objectividade, a autoridade formal, a amplidão
do escopo intelectual, etc.», então tanto umas como os outros se encontravam em
ambas as correntes literárias, a sentimental e a racional. «[...] talvez a
fronteira tivesse existido outrora», observou Gina Kaus, «mas não existe hoje».
Segundo ela, apenas na literatura de
genre se mantinha então o privilégio da masculinidade, naquelas obras em
que os personagens obedecem, como nas regras de um jogo, às convenções estritas
do género - a ficção científica e o romance policial.
Barreira de sexo? Não, apenas uma demarcação transitória. «Só desde há pouco
tempo foi permitida às mulheres a abordagem dos problemas da realidade. Até uma
data recente, ou elas próprias faziam parte da realidade ou eram uma ficção
concebida pelos homens. Tal como crianças que tenham subitamente de aprender
muito de uma só vez, elas não ousam dedicar-se ao jogo. Talvez daqui a vinte
anos a situação seja muito diferente, e quem sabe se na próxima geração daremos
graças pelo aparecimento do que tanto necessitamos - um Edgar Wallace feminino». E, com efeito, Agatha
Christie...
Situa-se
nos antípodas o feminismo académico surgido há já algum tempo, que relegou as
aspirações do velho feminismo para a vida quotidiana e anónima das mulheres
trabalhadoras. O novo feminismo chic
preenche um dos verbetes mais extensos daquele reportório de anomalias que é o
dicionário do «politicamente correcto». No seu célebre romance Orwell concebeu
o newspeak como linguagem dos
vencedores, cujo triunfo fora tão absoluto que podiam reconstruir o passado à
medida que iam edificando o presente, e se legitimavam no círculo vicioso. As
raízes desta cinzenta utopia encontram-se na reportagem sobre a guerra civil na
Catalunha, quando Orwell reflectiu que um triunfo total do fascismo em Espanha
e no mundo permitiria no futuro apresentar como verdade aquilo que, na
realidade da época, era uma absoluta mentira. A hegemonia prática incontestada
asseguraria aos vencedores o controlo completo sobre o dicionário e
deixá-los-ia, assim, alterar o próprio passado.
Todavia,
se a manipulação das palavras pode levar à desvirtuação das ideias, ela não tem
poder para apagar os factos. Os factos passados estão incluídos nos factos
presentes, fazem parte de nós mesmos, de cada um de nós ou daquilo que
combatemos. E se os senhores do dicionário têm a capacidade de vendar a
realidade com biombos, é-lhes impossível alterar a realidade só através das
palavras. Curiosamente, as inquietações de Orwell decorriam de um universo de encantações
mágicas. A manipulação da linguagem é um jogo de espelhos, praticado desde há
muito, como o lucidíssimo Jean-Paul Marat observou ao denunciar que «o
artifício corrente dos ministérios é [...] enganar o povo pervertendo o sentido
das palavras. [...] Nunca às coisas os seus verdadeiros nomes». Mas como nós não vivemos
do lado de lá do espelho, a desnaturação das imagens está permanentemente
condenada a confrontar-se com a realidade.
A
debilidade que hoje enferma as aspirações de emancipação social não podia
manifestar-se de maneira mais trágica, porque inteiramente caricata, do que no
«politicamente correcto». Trata-se de uma espécie de newspeak dos derrotados, que com a linguagem se envolvem numa teia
de ilusões, e aí permanecem, para alívio dos vencedores e não sem a
perplexidade de muita gente. Assim, por exemplo, o problema do racismo nos
Estados Unidos deixa de ter qualquer sentido se referirmos, em vez de negros,
afro-americanos, como se a discriminação resultasse do lugar de proveniência e
não das diferenças na tonalidade da pele ou no formato do nariz. Do mesmo modo,
se no Brasil se disser afro-brasileiros já o caso muda inteiramente de figura,
ou antes, de cor. E as dificuldades sentidas pelos deficientes físicos são
apagadas na expressão pudica de portadores de necessidades específicas, como se
todos nós não tivéssemos igualmente necessidades específicas. A lista podia
prolongar-se indefinidamente. O «politicamente correcto» consiste, em suma,
numa manipulação do vocabulário que apaga as palavras mais directamente
sintomáticas da persistência real dos problemas. Se quem não conseguiu alterar
a prática só pronunciar termos que obnubilam essa prática, a derrota esfuma-se
sob a doce ilusão da vitória.
O
tipo de feminismo que hoje adquiriu a hegemonia nas universidades e nos meios
de comunicação inclui-se pelas suas prestidigitações terminológicas na ampla e
acolhedora família do «politicamente correcto». À falta de as mulheres
alcançarem um plano de igualdade com os homens, essa igualdade é estabelecida
entre os artigos, os pronomes, as terminações, criando-se uma abstrusa
linguagem cheia de traços, barras, parêntesis e duplicações. Em géneros
literários considerados de segunda ordem, como o romance policial de estilo série noire – precisamente um tipo de
ficção onde existem tradições muito fortes de misoginia – a correcção política
da linguagem tem sido aplicada retrospectivamente em reedições realizadas nos
países de língua inglesa, e observo com assombro personagens da década de 1950,
os mesmos que se caracterizam pelo desprezo a que votam as mulheres,
mencionarem chairpersons e outras
inovações vocabulares de igual matiz. O que não altera a maneira muito pouco
correcta como as mulheres são tratadas na prática ao longo das páginas daqueles
livros.
Estes
exercícios «de género» adoptam a tradicional e consabida divisão entre as
esferas feminina e masculina, e basta-lhes atribuir uma conotação positiva
àquela esfera que antes era valorizada negativamente, classificando ao mesmo
tempo como negativa a esfera que primeiro fora objecto do aplauso de uns e da
inveja das outras. A inversão da hierarquia entre os termos, considerando como
fonte de virtudes a esfera feminina e a masculina como modelo de vícios,
reforça a crença na inelutabilidade da existência destes termos. A realidade
social, com as suas dicotomias, permanece inalterada. Só muda o vocabulário que
designa esta realidade, e muda de tal forma que passa a tornar a realidade
opaca para os observadores menos atentos.
Neste
malabarismo a operação central consiste em apagar a distinção entre o
ideológico e o biológico. A divisão entre a esfera social masculina e a esfera
social feminina resulta de uma criação cultural multi-secular, sendo inculcados
às mulheres comportamentos, maneiras e opiniões diferentes dos inculcados aos
homens. Mas, precisamente porque, em vez de pretender eliminar a separação dos
sexos, pretende consagrá-la, o actual feminismo académico baseia a sua
interpretação do mundo numa divisão de carácter estritamente biológico e a
partir daí constrói um complexo edifício de distinções culturais. Com igual
à-vontade procede em sentido inverso, quando atribui a um dado tipo de ideias,
de atitudes e de comportamentos uma conotação biológica, masculina ou feminina
consoante as preferências. Surgiu assim, como observa um filósofo que é ou foi
marxista, «um tipo de contra-sexismo em que - e não por acaso - as
diferenças sexuais são muito frequentemente expressas em termos que apresentam
os géneros como quase-raças [...]». Neste feminismo tanto se
pode passar da biologia para a cultura como da cultura para a biologia, e é
esta circularidade sem critério que as teorias «de género» partilham com o
nacional-socialismo e os seus antecessores directos, que conferiam uma
psicologia própria aos povos considerados biologicamente.
Vejamos
o caso de Luce Irigaray, uma luminária das abordagens «de género» na história
das ciências. «Será que E = Mc2
é uma equação de carácter sexual?», pergunta essa autora, para logo responder:
«Talvez seja. Admitamos como hipótese que o seja na medida em que privilegia a
velocidade da luz relativamente a outras velocidades que nos são vitalmente
necessárias. O que me parece indicar a possível natureza sexual da equação é
[...] o facto de ter privilegiado aquilo que vai mais depressa». Deixemos de lado as
implicações resultantes de um tratamento tão grosseiro das questões
científicas, que ilude a problemática da experimentação, para nos concentrarmos
na tese de que, como os homens podem correr mais rapidamente do que as
mulheres, uma física que atribui um lugar central ao conceito de velocidade
padece de um carácter masculino. Com o mesmo tipo de raciocínio, Luce Irigaray
sustenta que a mecânica dos sólidos está mais avançada do que a dos fluidos
porque são os homens quem controla a actividade científica, e o pénis é
susceptível de ficar rijo, enquanto o sexo das mulheres segrega os fluidos
vaginais e deixa sair o sangue menstrual. Assim, não seria só a
velocidade mas também a solidez a denotar a ideologia masculina no campo das
ciências, enquanto a ideologia feminina retiraria à rapidez os seus encantos e
estabeleceria os fluidos no devido lugar. Todavia, os progressos da física
contemporânea deveram-se não só a homens mas igualmente a pesquisadoras do sexo
feminino, de onde se conclui necessariamente que pelo facto de privilegiarem a
velocidade da luz ou de incrementarem o estudo da mecânica dos sólidos aquelas
mulheres eram verdadeiramente masculinas. Se estes termos pudessem ser
considerados com seriedade, seria curioso averiguar se o predomínio numérico
das mulheres na biologia ou na química, contrariamente ao que sucede na física,
teria levado aqueles ramos da ciência a evoluir por caminhos opostos aos da
física.
Mas
não me parece que seja necessário continuar aqui a referir textos de autoras
feministas contemporâneas para ilustrar a forma como elas radicam numa
distinção biológica as distinções culturais e como, simultaneamente, encontram
nas diferenças ideológicas o indício de uma distinção biológica. A dificuldade
residiria não em encontrar as citações mas em seleccioná-las, de tão abundantes
que são. Julgo que até o leitor mais desprevenido não deixou de deparar com
este tipo de duplo raciocínio. Por isso decidi concentrar as citações deste
curto artigo noutro aspecto muitíssimo menos conhecido, para mostrar que o
nacional-socialismo procedia a propósito das raças – ou daquilo que denominava
raças – ao mesmo tipo de operação.
Com
efeito o racismo, mais profundamente do que uma mera hierarquização étnica, consiste
na atribuição de raízes biológicas a comportamentos e modos de pensar que são
de origem social. A biologização da cultura é a característica distintiva do
racismo. Houston Stewart Chamberlain, um dos quatro precursores oficiais do
hitlerismo, deixou muito claro, em especial ao opor-se a Paul de Lagarde, outro
pontífice oficial do racismo germânico, que na sua opinião as raças eram
entidades fundamentalmente biológicas, e não apenas culturais e ideológicas.
«[...] a configuração da cabeça e a estrutura do cérebro exercem sobre a
configuração e a estrutura dos pensamentos uma influência perfeitamente
decisiva; tão decisiva que, por maior que seja a influência atribuída ao meio,
esta não deixa de estar submetida à constituição física enquanto facto originário,
o qual reduz o número das suas possibilidades, determina o seu campo de acção e
prescreve-lhe as suas orientações e os seus limites [...]». A forma intelectual
exprimiria de maneira directa a forma biológica. «[...] em vez de ser fortuita
ou indiferente, a forma exprime o
âmago do ser, e [...] é nela, precisamente nela, que entram em contacto os dois
mundos componentes do nosso universo, o exterior e o interior, o visível e o
invisível».
Não
podia ser mais flagrante a identidade de perspectivas com o feminismo académico
dos nossos dias, que também ele considera que uma «configuração» física, neste
caso a forma do sexo, «exerce sobre a configuração e a estrutura dos
pensamentos uma influência perfeitamente decisiva». E a semelhança não pára
aqui, porque assim como esse feminismo, depois de passar da biologia para a
cultura, passa da cultura para a biologia e cataloga certos comportamentos e
certas ideologias como masculinos e outros como femininos, também Houston
Stewart Chamberlain tomava a cultura e as ideias como indício seguro da raça.
Considerada
por Chamberlain enquanto forma, a biologia conformava o pensamento; em sentido
inverso, as grandes ideias, os eixos ideológicos norteadores, «são quase tão
palpáveis» como os corpos físicos. «Relativamente à raça», admitia ele, as
ideias «são sem dúvida uma consequência.
Mas tenhamos o cuidado de não subestimar o contributo desta anatomia interior e
invisível - desta dolicocefalia ou desta
braquicefalia puramente espirituais - que age
como causa e tem um âmbito de acção
muitíssimo vasto». Era aqui que Chamberlain
encontrava justificação para, quando melhor lhe convinha, deduzir a biologia a
partir da caracterização ideológica. «[...] aquilo que designamos pela palavra
“raça” é, dentro de certos limites, um fenómeno plástico, e assim como o físico
reage sobre o intelectual, o intelectual reage do mesmo modo sobre o físico». Este vaivém metodológico
encerrou num círculo vicioso o erudito autor do monumentalíssimo Fundamentos do Século XIX, servindo-lhe
de demonstração onde coisa alguma se podia demonstrar e servindo aos seus
discípulos de justificação para o genocídio dos judeus, a escravização dos
eslavos e o culto dos nórdicos. Naquele país das maravilhas «nada nos impediria
de afirmar algo aparentemente paradoxal, que os homens baixos deste grupo [os
germanos] são grandes porque pertencem a uma raça de pessoas altas, e pelo
mesmo motivo os seus braquicéfalos têm crânios alongados. Observando com mais
atenção, depressa distinguireis, tanto no seu aspecto físico como no seu ser
íntimo, os traços característicos do germano». Se por acaso
encontrássemos um wagneriano pequenino e braquicéfalo, nada de precipitações,
«observando com mais atenção» estávamos em Bayreuth, ei-lo - era um germano, era grande, era dolicocéfalo!
Com
o método infalível do círculo vicioso o enciclopédico doutrinador pisava com
firmeza os dois terrenos e deduzia a biologia a partir da cultura com o mesmo
à-vontade com que partira da biologia para estabelecer a cultura. Afastando as
dúvidas de numerosos filólogos quanto à possibilidade de usar critérios
linguísticos para definir uma raça ariana e desprezando também os «resultados
caóticos obtidos pela mensuração craniana», Chamberlain pretendia que bastava a
semelhança de concepções jurídicas para definir os arianos enquanto raça e para
os distinguir das outras raças. E o amor que celtas e
germanos votavam à poesia indicaria tanto como a sua semelhança física a
inclusão dos dois povos numa mesma raça germânica, considerada em sentido lato. A aptidão poética seria
também um argumento a favor da comunidade de origens do germano e do velho
eslavo, e com um objectivo
idêntico Chamberlain invocou a similitude dos sentimentos religiosos.
Esta
cómoda possibilidade de inferir a raça a partir do espírito não se aplicava só
a noções colectivas e a vastos conjuntos populacionais, mas funcionava
igualmente nos casos individuais. Ambrósio, por exemplo, bispo de Milão e
célebre santo, era classificado entre os verdadeiros romanos. «[...] é certo que
a prova é impossível», observou Chamberlain, para concluir em seguida com uma
peculiar metodologia: «[...] mas como é igualmente impossível demonstrar o
contrário, o único elemento de apreciação decisivo é aqui fornecido pela
própria personalidade». Uma vez mais aquilo que
se pretendia demonstrar servia de prova da demonstração. As biografias de
santos ofereceram a Chamberlain um terreno fértil de deduções, já que, «com o
Cântico ao Sol, Francisco [de Assis] demonstra ser um indo-germano de sangue
puro [...]».
Ele torceu porém o nariz perante outro santo não menos conhecido, Paulo de
Tarso, e em abono da sua tese de que o apóstolo teria um pai judeu e uma mãe
grega convertida ao judaísmo recorreu de novo ao infalível círculo vicioso.
«Quando faltam as provas históricas, a psicologia científica tem todo o direito
de dar a sua opinião». Seguia-se uma análise
dos traços psicológicos de São Paulo e das características da sua teologia, que
para a frondosa imaginação de Chamberlain revelariam ascendentes biológicos
contraditórios.
Se
era possível transitar do espírito para o físico, nada impediria as influências
ideológicas de corresponderem a verdadeiras mestiçagens raciais. Note-se a
importância deste passo, pois o plano cultural não se limitava já a ser transformado
de expressão da biologia em ponto de partida da biologia, mas a própria
actividade intrabiológica poderia ocorrer directamente no âmbito cultural. A
assimilação através das ideias agiria até mais depressa do que a assimilação
através da miscigenação física. Pusesse-se o leitor de
Chamberlain a frequentar judeus, a ler literatura judaica, a apreciar quadros e
esculturas de artistas judeus, e tê-lo-íamos judaizado num ápice. Sucedera isto ao
herético Pelágio, apesar de ser «bretão», mas «o aristotelismo e o hebraísmo
fizeram-no a tal ponto perder [...] o sentido da poesia e do mito que ele se
converteu [...] num semijudeu [...]».
O
nazismo tornou ameaçadoras, e mais tarde trágicas, as elucubrações alucinadas e
metodologicamente incriteriosas de Houston Stewart Chamberlain, já que a
circularidade de argumentação entre a biologia e a ideologia foi também
empregue, com as consequências conhecidas, por Hitler e pelos seus adeptos.
Quando o Führer, ao discursar no congresso do partido nacional-socialista em
1933, se referiu, a propósito dos nórdicos, «àqueles que pertencem em espírito
a uma certa raça», ele deixou implícito que
tanto se podia deduzir uma cultura de uma biologia como deduzir uma biologia
das manifestações de uma cultura. E foi com este critério - ou falta dele - que Hitler
orientou a sua política.
Para
o nacional-socialismo todos os judeus, pelas suas próprias características
raciais, eram subversores. Segundo a mitologia que os nazis herdaram de alguns
dos seus precursores, os judeus seriam não uma raça mas uma anti-raça, formada
pelas escórias de outras raças, e por isso era-lhes vedado possuir uma coesão
própria. Como afirmam as instruções do Ministério da Propaganda enviadas em 2
de Abril de 1943 aos directores e chefes de redacção dos órgãos de imprensa do
Reich: «Sublinhar: No caso dos judeus não se trata apenas da existência de um
pequeno número de criminosos (como sucede em qualquer outro povo), mas todo o
judaísmo se desenvolveu a partir de raízes criminais e a sua própria natureza é
criminosa. Os judeus não são um povo como os outros, mas um pseudopovo cuja
coesão se deve à criminalidade hereditária». Os judeus unir-se-iam
contra os seus inimigos, mas sem que eles mesmos fossem coesos. Desta condição
de anti-raça lhes adviria o afã em destruir tudo o que fosse uma ordem estável.
Num discurso de 11 de Dezembro de 1941 Hitler estigmatizou «o elemento judaico,
cujos interesses conduzem todos à desintegração, e nunca à ordem». Tratava-se de um tema
comum do nacional-socialismo, que justificava o genocídio dos judeus com a
apologia da ordem.
E
assim como de uma caracterização biológica, ou tida como tal, os nazis inferiam
os traços distintivos de um comportamento e de uma cultura, em sentido inverso
consideravam que todos os subversores – socialistas, comunistas, anarquistas –
pelo mero facto de o serem, mostravam o seu carácter racialmente judaico. «Para
tornar uma luta compreensível às mais vastas massas ela deve ser sempre
orientada contra dois alvos, contra uma pessoa e contra uma causa», explicava
Hitler aos seus adeptos em 1925. «Assim, contra quem deve combater o nosso
movimento? Contra o judeu enquanto pessoa e contra o marxismo enquanto causa». E pouco antes de
soçobrar nos escombros do Reich o Führer insistia ainda: «Falamos de raça
judaica por comodidade de linguagem, porque, para falar com exactidão e sob o
ponto de vista genético, não existe uma raça judaica. [...] A raça judaica é
antes de mais uma raça mental. [...] Uma raça mental é algo mais sólido e
duradouro do que uma simples raça». Tal como, relativamente
aos nórdicos, Hitler havia podido evocar aqueles que «pertencem em espírito a
uma certa raça», também relativamente aos judeus ele podia referir a «raça
mental».
As
próprias normas jurídicas do Reich identificaram a condição de judeu com a
condição de comunista. Durante anos os judeus atingidos pelas medidas raciais
foram classificados como «inimigos do Estado», sendo mesmo, por vezes,
obrigados a assinar declarações em que se reconheciam como «comunistas». Só em
Novembro de 1941 o Ministério das Finanças passou a dispor de um quadro legal
que lhe permitiu confiscar em massa os haveres dos judeus deportados; até então
as apreensões haviam obedecido a um critério individual, recorrendo-se na maior
parte dos casos às leis que autorizavam a expropriação dos bens dos comunistas
e dos demais opositores. Esta evolução do sistema
jurídico, todavia, não implicou que para os nazis as categorias raciais
tivessem deixado de equivaler a categorias ideológicas, porque segundo duas
sentenças de tribunal, de Junho de 1942 e de Fevereiro de 1943, mesmo pessoas
que, quanto aos seus progenitores, fossem cem por cento arianas seriam tratadas
como judeus se mostrassem estar ligadas por elos religiosos e civilizacionais à
comunidade judaica.
Com
efeitos incomparavelmente mais trágicos, o círculo vicioso entre biologia e
ideologia orientou o genocídio. Nos vastíssimos territórios de Leste ocupados
pelas tropas do Reich e pelas dos seus aliados, os Einsatzgruppen, Comandos de
Extermínio, matavam indiferenciadamente judeus e comunistas, porque consideravam
qualquer comunista como judeu. O objectivo explícito dos Einsatzgruppen
pressupunha a ausência de distinção entre as duas categorias, e nem sequer a
contabilização dos mortos separou as vítimas ideológicas das vítimas raciais.
Na maioria dos relatórios as execuções de judeus e de membros do Partido
Comunista soviético foram enumeradas em conjunto, sem que possamos discriminar
as duas categorias de vítimas. E ao sabermos que um douto
professor da Universidade de Strassburg escreveu a Himmler pedindo-lhe crânios
de «comissários judaico-bolchevistas» destinados ao museu do seu departamento,
para afinal receber crânios de judeus assassinados num campo de concentração,
porque não se encontrara um número suficiente de cabeças de comunistas em bom
estado, podemos concluir que
mesmo para os cientistas – ou para quem assim se intitulava – as
características biológicas se confundiam plenamente com as ideológicas. Aliás,
a terminologia corrente identificava o político e o étnico ao referir o
«bolchevismo judaico». Era este o conceito nuclear, exprimindo de maneira
sintética a circularidade de percursos entre o físico e o intelectual. Por isso
Himmler, em 1942, opôs-se a qualquer tentativa de definir por decreto o que se
entendia por «judeu», já que, para empregar as suas palavras, «com todos esses
estúpidos compromissos estaremos unicamente a embaraçar a nossa acção». Com efeito, seria
impossível delimitar através de critérios físicos uma raça, ou antes uma
anti-raça, à qual era atribuída a fluidez das entidades ideológicas. «Para a
filosofia SS, o inimigo é o poderio do Mal, expresso intelectual e
fisicamente», escreveu um antigo prisioneiro dos campos de concentração, que
analisou com muita lucidez a estrutura interna do sistema concentracionário
nazi. «O comunista, o socialista, o liberal alemão, os revolucionários, os
resistentes estrangeiros são os representantes activos do Mal. A existência
objectiva de certos povos, porém, de certas raças, dos judeus, dos polacos, dos
russos é a expressão estática do Mal. Um judeu, um polaco, um russo não
precisam de agir contra o nacional-socialismo; por nascimento, por
predestinação, eles são heréticos não assimiláveis, destinados ao fogo
apocalíptico».
Também
na dança de roda entre o sexo e as ideias, as ideias e o sexo, as defensoras e
os defensores das abordagens «de género» não seguirão o caminho que quiserem,
mas aquele que a história lhes ditar, e será aí, nesse terreno último, e de nós
todos agora desconhecido, que eles e elas se apresentarão com o seu rosto
definitivo. Sucedeu-me participar numa banca julgadora de uma tese de
doutoramento feminista na USP, e outro dos membros da banca, mais meticuloso do
que eu, deu-se conta de algo que me escapara e observou à candidata que ela se
referira no feminino às professoras de uma dada escola e no masculino ao
pessoal directivo, embora este fosse igualmente composto por mulheres. E a
autora da tese exclamou, não sei se com notável candura teórica ou completo
despudor metodológico: «Eu não consigo sequer usar o género feminino para
designar esse tipo de práticas». Não pude deixar de ouvir o eco das
vociferações de Hitler - aquelas, ou
aqueles, que pertencem em espírito a um certo sexo, um sexo mental!
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