quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

DIVISÕES PERIGOSAS: COTAS RACIAIS E SUA CRÍTICA

DIVISÕES PERIGOSAS: COTAS RACIAIS E SUA CRÍTICA



Carlos Linhares Veloso Filho
Juliana Fernandes Kabad

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, 
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.

DIVISÕES PERIGOSAS: POLÍTICAS RACIAIS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO. Fry P, Maggie Y, Maio MC, Monteiro S, Santos RV. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira; 2007. 363 pp.



Nas últimas décadas, no Brasil, intensificaram-se as discussões acerca do papel da cor e da raça como geradoras e mantenedoras de iniqüidades sociais. Isso suscitou a formulação de uma série de políticas públicas desenvolvidas para direcionar tais problemas, especialmente nas áreas de saúde e educação. Pari passu, estudos genéticos recentes reforçam a noção do povo brasileiro como altamente miscigenado. Além disso, há o questionamento se os mais importantes propulsores das iniqüidades não seriam as diferenças econômicas e educacionais.

Na perspectiva de setores dos movimentos sociais, a chamada "consciência racial" se estatui a partir de uma identidade racial, configurada na polarização branco/negro, e se torna pré-requisito para a luta contra as desigualdades sociais. A figura do Estado tem lugar fundamental nesse processo, uma vez que a adoção de políticas de ação afirmativa exige uma definição clara do perfil de seus beneficiários, e sua atuação é imprescindível para a produção da "raça negra", sobretudo em um país como o Brasil, onde a maioria da população não se alinha a sistemas rígidos de classificação racial. Para alguns autores, esse esforço poderia contribuir para a difusão de uma visão "reificada" de raça, com a presença da mão do Estado produzindo identidades étnico-raciais com trágicos exemplos históricos.

Foi no bojo desse acalorado contexto que um grupo de antropólogos, sociólogos, historiadores, geneticistas e ativistas organizou Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo. A proposta foi reunir reflexões, com base em perspectivas variadas sobre tais temas em efervescência, e analisar as legislações e políticas públicas recentes no país. O livro está organizado em cinco blocos temáticos, no total de quarenta e seis artigos escritos por trinta e oito autores das mais diferentes áreas. Esses artigos são oriundos, em sua maioria, da imprensa escrita de circulação diária, publicados entre os anos de 2002 e 2007. Os textos são curtos, de fácil leitura, porém densos e instigantes.

O primeiro bloco, Raça, Ciência e História, oferece uma perspectiva histórica sobre o conceito de raça e do racismo na sociedade brasileira. O ponto de consenso reside na afirmação de que não existem raças humanas do ponto de vista biológico, ainda que permaneça existindo como fato ideológico e cultural. Mas, para tanto, a ciência teria um papel importante de instrução da esfera social, em especial por ter consolidado historicamente a existência do conceito de raça. Os argumentos desse bloco giram em torno da crítica de que as políticas públicas de recorte racial que estão sendo implantadas no Brasil são fortemente marcadas por tradições e influências de outros países (como, por exemplo, os Estados Unidos), que se apóiam na identificação de grupos "raciais" bem definidos - condição oposta à realidade brasileira. Os autores defendem a necessidade de se observar historicamente a questão racial brasileira, de modo a recuperar os fatos do passado para melhor instruir atualmente a população brasileira sobre esta questão, particularmente no ensino escolar.

No segundo bloco, Quem é Negro no Brasil?, o próprio título introduz a questão, problematiza as estratégias utilizadas para a classificação étnico-racial no país no âmbito das atuais políticas de recorte racial. Os argumentos se sustentam no conhecido processo histórico da miscigenação, para além da história da discriminação racial. Por conseqüência, entende-se que aplicar a classificação racial dos brasileiros por meio de categorias fixas tomadas com base na cor da pele é desconsiderar a herança de brancos, indígenas e negros que formam a sociedade brasileira. O principal problema apontado é o de que a classificação racial incidirá na garantia de direitos civis e políticos por meio de políticas afirmativas compensatórias, mediante a divisão racial da sociedade brasileira, embora na prática não esteja dividida racialmente.

O terceiro bloco, Educação, levanta as questões referentes a este campo, no que diz respeito às políticas adotadas pelo Ministério da Educação (MEC) tanto para o ensino escolar quanto na implantação do sistema de cotas raciais nos vestibulares de algumas universidades públicas. A atenção concentra-se nesse último aspecto, por se tratar de um assunto bastante polêmico no contexto brasileiro. O posicionamento crítico parte da preocupação de que a adoção de cotas baseando-se em critérios raciais prejudica a grande maioria dos concorrentes dos vestibulares, em especial aqueles que possuem condições sociais e econômicas de desprestígio. Os autores avaliam que as cotas não atingem o problema central da falta de vagas na educação básica e gratuita para toda a população, principalmente para a população pobre, que inclui indivíduos de todas as cores.
O quarto bloco, Saúde, faz referência às políticas afirmativas inseridas no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como situa historicamente a relação raça e saúde, que se iniciou com o contexto da escravidão. Os autores mostram os problemas e as limitações dessa associação, por ter contribuído para o fortalecimento das teorias do determinismo biológico no campo da medicina e da saúde pública no Brasil, e pela estigmatização das populações negras. Desse modo, apontam o evidente isolamento da categoria cor/raça como único meio de se entender as condições de saúde e vulnerabilidade para o adoecimento em contextos de profundas desigualdades sócio-econômicas. Deveriam ser consideradas as condições de educação, renda, moradia, alimentação, transporte, entre outros aspectos. Setores do movimento negro, da comunidade científica e do governo, com o apoio do Ministério da Saúde, defendem uma política de saúde focada na "população negra". Entretanto, essa tese permite que agravos sejam transformados em doenças "raciais", como é o caso da anemia falciforme. Portanto, ao invés da introdução de uma política pública racializada específica para a população negra, os argumentos enfatizam que deveriam ser aperfeiçoados os mecanismos de humanização do SUS, de forma a garantir acesso de qualidade para todos os cidadãos.

Raça em Tudo?, é o último bloco e traz uma revisão das idéias centrais do livro que perpassam em todos os artigos. A questão, portanto, se concentra principalmente na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, em tramitação no Congresso Nacional, que, na visão dos autores, caminha na contramão do princípio de cidadania da Constituição Federal de 1988. O ponto de consenso é o entendimento de que o principal problema da questão racial atualmente é o processo de racialização em curso no país, que não parte da compreensão sobre a realidade brasileira do modo como o racismo aqui se manifesta, e sim, em estratégias adotadas em outros países. Por isso, conseqüentemente, a instituição do negro como entidade jurídica perante o Estado torna-se um problema, em especial por transformar classificações gerais (como as do IBGE) em identidades sociais com direitos específicos.

Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo é um dos poucos livros que, no atual cenário de discussões, se coloca criticamente em relação à implementação de políticas de recorte racial no Brasil. Assim sendo, não teria como não ser controverso. Isso fica evidente nas palavras dos organizadores, ao indicarem que o objetivo da obra é colaborar para o amadurecimento da discussão e contribuir para um melhor encaminhamento das ações afirmativas, de forma a abranger as desigualdades sociais no Brasil: "reconduzir o debate para o terreno ao qual ele de fato pertence: a possibilidade de explicitação de opiniões e a defesa de pontos de vista sem rotulações preconcebidas. Ao criticarmos a racialização em curso, tomamos a mais radical posição antirracista - solapar os pressupostos que embasam a idéia de raça" (p. 18). Pluralidade de opiniões é essencial para o debate democrático, marca deste livro.

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Cadernos de Saúde Pública

Print version ISSN 0102-311X

Cad. Saúde Pública vol.26 no.1 Rio de Janeiro Jan. 2010

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2010000100023 

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